O Padre Ivo Tonelli

 

O Padre Ivo Tonelli, fundador da Obra ABC (Amigos do Bom Conselho), a que se dedicaria e com que praticamente se identificaria nos 24 anos de permanência em Portugal, nasceu na freguesia de Casteluccio Montese, que em português dir-se-ia Castelinho Montanhês, Província de Módena, centro-norte da Itália.

Nasceu a 25 de Janeiro de 1921, festa da Conversão de São Paulo. Em 1938, já com 17 anos de idade, entrou na Escola Apostólica de Albino (Bérgamo), nela permanecendo até 1942, para passar ao noviciado de Albissola (Savona, Ligúria), onde professará a 29 de Setembro de 1943, com o nome religioso de Eusébio.

Frequentou o primeiro ano de filosofia (1943-1944) no Instituto Missionário de Folinho, arredores de Assis. O ano seguinte, por causa da guerra, teve de passá-lo na casa paterna, aliás como outros seus confrades estudantes, renovando os votos nas mãos do pároco, delegado para o efeito pelo Superior Provincial.

Terminada a guerra, regressou à comunidade de Folinho, para completar, no ano 1946-1947, o curso filosófico. Fez estágio de vida religiosa – prefeito – na Escola Apostólica de Albino, no ano 1947-1948. Foi, depois estudar teologia em Bolonha, no seminário maior da Província Dehoniana italiana, chamado Studentato delle Missioni (Estudentado das Missões), onde permanecerá quatro anos, de 1948 a 1952. Ordenado sacerdote a 24 de Junho de 1951, concluirá no dito Studentato o ano de pastoral.

O primeiro destino e tarefa pastoral do jovem sacerdote Ivo Tonelli foi a casa de Albissola, onde frequentara o Noviciado, dedicando-se aí à formação dos aspirantes a Irmãos Cooperadores. Em Abril de 1958, ei-lo em Portugal, colocado no Colégio Luís de Camões de Coimbra, onde, em 1954, os Dehonianos haviam assumido a tarefa educadora, em parceria, administrativa e não só, com os proprietário do mesmo. Abandonando os Dehonianos dito Colégio em 1962 e abrindo, como alternativa, na mesma diocese e cidade de Coimbra, o Colégio São João, neste se integraria o Padre Ivo como orientador disciplinar.

Foi nos anos da sua experiência pastoral e pedagógica em Coimbra, nomeadamente no Colégio São João, que o Padre Ivo procurou realizar um sonho que certamente vinha acalentando desde os anos de estudante de teologia em Bolonha: permitir a jovens inteletualmente dotados, mas sem possibilidades económicas, estudar e singrar na vida, tornando-se, já nos anos de estudo e, mais tarde, na vida profissional, um fermento de valores cívicos e cristãos na sociedade e na Igreja. Dará à sua Obra o sugestivo nome de ABC ou seja “Amigos do Bom Conselho”.

Mas se a intuição era feliz e benemérita, o percurso da sua concretização revelar-se-á cheio de obstáculos e dificuldades, que, longe de desanimar o Padre Ivo, mais o determinarão na realização e consolidação da Obra. A então Região dos Sacerdotes do Coração de Jesus não se sentia em grado de apoiar a iniciativa do confrade, considerada boa, mas pessoal e avulsa do programa da Região. Faltou assim o poio institucional, passando o Padre Ivo por provas dolorosas, que chegarão a pô-lo na real eventualidade de vir a abandonar o Instituto para poder dar continuidade à sua Obra. Os superiores exigiam do Padre Ivo uma integração e dedicação na comunidade religiosa onde o colocavam e nas tarefas que lhe eram confiadas, exigência difícil de cumprir cabalmente, também pelas reservas que os confrades de comunidade punham à originalidade da nova obra e seu fundador.

Em 1963, fecharia também o Colégio São João. A comunidade religiosa será transferida para Ermesinde, para um seminário menor que a Congregação acabava de abrir nessa localidade nortenha dos arredores do Porto. E eis também para lá transferido o Padre Ivo, com a sua criatura em gestação, mas que já era alvo de preocupação e discernimento por parte do Conselho Regional de então.

No primeiro ano de permanência em Ermesinde, sendo ainda superior do novo seminário menor o Padre Canova, o Padre Ivo dá vida à sua Obra, num regime de convivência dos seus jovens com os seminaristas. Tal convivência manter-se-á, com maiores ou menores dificuldades, enquanto o seminário menor se mantiver em Ermesinde. Inicialmente, o maior problema foi de ordem jurídica: a legitimidade de um religioso, mantendo-se na Congregação, tomar autonomamente uma iniciativa do género. Dividido entre a atenção a dar à sua incipiente Obra e a colaboração na orientação disciplinar de dito seminário, e ainda por cima com os seus protegidos a residir no recinto do seminário, o Padre Ivo passaria momentos de grande tormento interior, devendo discernir entre o futuro a garantir à sua Obra e a obediência aos superiores religiosos. A tentação de abandonar o Instituto para dar continuidade ao ABC marcar-lhe-á os finais da década de sessenta e inícios da de setenta. É reveladora de muito sofrimento a troca de correspondência epistolar do Padre Ivo com os Superiores Regional e Provincial e com o confrade Padre Luís Celato, que, a trabalhar isoladamente no Algarve, se tornaria seu conselheiro e confidente, encorajando-o a manter-se na Congregação. O amor à Congregação acabaria por triunfar, graças também a uma melhor compreensão por parte dos superiores. O Padre Ivo comprometeu-se a manter-se integrado numa casa da Congregação, a colaborar com esta e a não expandir, por ora, a sua Obra.

Nos finais dos anos 60, o seminário de Ermesinde é transferido para a nova sede em Gondomar, o atual Seminário Missionário Padre Dehon. O Padre Ivo passa a pertencer juridicamente ao novo seminário, onde figura como prefeito de estudos, continuando porém a dedicar-se à sua Obra ABC e a residir nela, que, a partir do encerramento do seminário em Ermesinde, de casa alugada em casa alugada, acabará por ter também a sua sede definitiva na atual de Rio Tinto, no nº 232 da Rua Ernesto Fonseca.

Para assegurar a continuidade e desenvolvimento do ABC, o Padre Ivo criará uma rede de benfeitores, sobretudo estrangeiros, com quem manterá um regular contacto epistolar.

De 1975 a 1979, o Padre Ivo acumulará a direcção da Obra ABC com a do Padre Grillo, em Matosinhos, esta dedicada ao acolhimento e educação de crianças e jovens da rua, uma versão da Obra do Padre Américo.

Implantada a sua Obra na nova sede de Rio Tinto, o Padre Ivo encontrará finalmente a necessária autonomia e condições de fazer crescer a sua criatura, à margem da já então Província Portuguesa Dehoniana, uma marginalidade porém que não significa desinteresse nem alheamento de ambas as partes. Se não há colaboração em termos de pessoal, colaboração essa que nem o Padre Ivo prevê ou solicita, esta dá-se todavia em termos financeiros, pois será à ajuda da Província religiosa, a que continua a pertencer, que o Padre Ivo recorrerá para a compra da nova sede, sua bonificação e ampliação. Para permitir-lhe uma dedicação total ao ABC, a Congregação substituirá, em 1979, o Padre Ivo com o Padre Miguel Corradini na direção da Obra do Padre Grilo.

Mas quando tudo se conjugava para que a Obra do ABC tivesse um novo fôlego, eis uma nova, imprevista e grave dificuldade: a doença do seu fundador. Ao Padre Ivo é diagnosticado, em 1981, um cancro no esófago, que em pouco tempo o levará à morte. A 21 de Março de 1982, na idade de 61 anos, é chamado à Casa do Pai, deixando órfã a criatura que concebera e criara com tanta dificuldade e dedicação. Uma órfã, porém, que a Congregação adotará e passará a cuidar.

Terminando esta breve referência à memória do Padre Ivo Tonelli, reproduzo o texto poético com que, nos fins de Junho de 1951, foi anunciada na sua terra natal de Castelluccio Montese a sua Missa Nova:

Partisti gnorato piccino

e nessuno s’accorse

fra i poveri che ne mancasse uno,

ma ora che dopo anni e anni ritorni,

te vediamo più grande di tutti.

Sappiamo il tuo nome

DON IVO TONELLI.

Partiste ignorado, e ninguém se apercebeu que, entre os pobres, faltava um. Mas agora, depois de tantos anos, regressas e vemos-te maior que os outros. Sabemos como te chamas: Padre Ivo Tonelli!

Também muitos de nós, Dehonianos da Província Portuguesa, te vimos entre nós e nem procurámos conhecer-te; vivias por tua conta, dedicado à tua Obra, pobre entre os pobres. Mas agora não só recordamos o teu nome; reconhecemos o teu valor e queremos manter a tua memória, acarinhando a Obra que, ao partir, deixaste ao nosso cuidado.

 

A Obra ABC

Mais que uma intuição fulgurante, uma visão ou mensagem do Alto, que recebem alguns fundadores de Institutos religiosos ou de obras eclesiais de vulto, penso que a ideia de realizar o ABC surgiu aos poucos na mente do Padre Ivo Tonelli.

O fato de o anúncio da sua Missa Nova, na terra natal, fazer aceno à sua origem humilde e condição pobre, e o ter entrado no seminário já com 17 anos, leva a insinuar a existência de dificuldades, nomeadamente económicas, para realizar o seu projeto de ser sacerdote. Terá depois sido influenciado, durante os estudos de teologia em Bolonha, pelo famoso Padre Marella, um sacerdote diocesano, que, nesses anos do imediato pós-guerra, se dedicava aos rapazes pobres da cidade de Bolonha, tornando-se uma figura mítica, a mendigar de batina e com o chapéu às portas dos cinemas e nas encruzilhadas das ruas, para manter os “seus rapazes”, nomeadamente os seus estudos. Consta que o jovem estudante Ivo Tonelli desse a sua colaboração ao dito Padre Marella.

Na mesma altura, os Dehonianos procuravam abrir, também em Bologna, uma estrutura de acolhimento para rapazes pobres, o atual Villaggio del Fanciullo (Aldeia da Criança), imitação da que o Padre irlandês Joseph Flanagan criara em Omaha, nos Estados Unidos, a Boy’s Town (Cidade dos Rapazes), ideada no esquema de auto-governo, e que se tornaria célebre em livros e filmes.

Também em Roma, nesse final dos anos 40, Mons. Tardini, Substituto de Pio XII na Secretaria de Estado, fundara a Villa Nazareth, destinada a acolher jovens pobres, mas inteletualmente dotados, para permitir-lhes estudar e ser alguém na vida, também em vista da evangelização da sociedade.

Os anos que o jovem sacerdote Ivo Tonelli dedicará à formação de futuros Irmãos Cooperadores, em Albissola, no contato com esses jovens que, não conseguindo enveredar pelo caminho dos estudos e ser padres, se realizavam numa outra forma de consagração religiosa, a laical, devem ter contribuído para amadurecer o seu projeto.

O que era afinal o ABC no projeto inicial do Padre Ivo Tonelli? Precisamente uma aplicação, no contexto português, desse ideal dos Padres Flanagan e Marella, do Villaggio del Fanciullo e da Villa Nazareth. São sintomáticos e sugestivos os primeiros estatutos ou ideário do ABC, apresentados, em 1963, ao Conselho da então Região dos Dehonianos em Portugal:

“Amici Boni Consilii – um movimento católico apolítico, cujos objectivos são:

1º – criar elos de amizade e colaboração entre os seus membros, numa base internacional;

2º – empenhar-se em exercer uma influência cristã sobre a sociedade;

3º – prestar assistência a rapazes, principalmente aos pobres, mas moral e intelectualmente mais bem dotados, e prepará-los de forma a poderem vir a exercer uma influência cristã sobre a sociedade.

Como é que se dará assistência e esses rapazes?

  1. a) rezando por eles;
  2. b) trocando correspondência com um ou outro grupo, a fim de exercer sobre eles uma influência cristã;
  3. c) fazendo o possível por criar elos de amizade entre eles e outros rapazes moral e intelectualmente bem dotados de outros países;
  4. d) providenciando férias a um ou a um grupo deles numa boa atmosfera católica;
  5. e) contribuindo para a manutenção deles num colégio.

4º – ter na dedicação à Santa Sé e na fidelidade à Hierarquia a virtude distintiva do movimento”.

Não se tratava, portanto, de uma Obra exclusivamente para jovens; era um movimento que abrangia também adultos, se bem que em função da educação de jovens. O ABC tinha ainda uma chamada Secção Juniores, que, por sua vez, era

“uma actividade católica juvenil, que tem por fim:

1º – pôr-se em contacto de amizade e colaboração com os melhores rapazes numa base internacional;

2º – travar conhecimento e tomar amizade com os óptimos católicos no País e no estrangeiro;

3º – conquistar, mediante a amizade, os rapazes mais bem dotados de inteligência e ajudá-los a tornarem-se fermento de bem na sociedade”.

O Padre Ivo, uma vez em Portugal, fora colocado, no Colégio Luís de Camões, em Coimbra, um estabelecimento de ensino para jovens não seminaristas. Era a primeira experiência pastoral do género para os Dehonianos em Portugal, embora a Congregação tivesse longa experiência em matéria noutros países, inclusive na Itália. Quatro anos mais tarde, em 1962, os Dehonianos abandonarão esse colégio e fundarão um outro, sempre em Coimbra – o Colégio São João – para permanecer nesse ramo do ensino. Tais experiências devem ter servido de catalizador ao Padre Ivo para concretizar o sonho certamente acalentado havia anos. O ato concreto de fundação da Obra ABC dar-se-á porém em 1964, com o encerramento do Colégio São João e a transferência da comunidade religiosa e de alguns alunos para o seminário menor acabado de abrir em Ermesinde. Foi aqui que o Padre Ivo se rodeou de um grupo de jovens, que, vivendo na área do seminário e com momentos de convivência comum com os seminaristas, iam à escola externa, procurando traduzir na vida os ideais do ABC, acima referidos. São comoventes dois testemunhos conservados no Arquivo Provincial sobre o empenho apostólico desses jovens, convidados a ser fermento de bem nas escolas que frequentam.

As dificuldades por que passou o Padre Ivo para dar estabilidade e incrementar o ABC já foram referidas no artigo sobre a sua vida. Menciono aqui apenas a evolução que a Obra seguiu, em termos de ideário e estatutos, que é aliás a fisionomia que a Obra hoje apresenta. Os atuais estatutos refletem essa mudança: não já um movimento de adultos e jovens, consagrado ao apoio educativo de jovens pobres mas particularmente dotados, na linha da criação de uma elite que se torne fermento na sociedade e na Igreja, mas sim uma resposta à chaga social de crianças desprovidas do ambiente familiar, necessário para servir de base a um amadurecimento normal. Por necessidade de circunstâncias – dar resposta a esse problema social e obter os indispensáveis apoios financeiros do Estado –, a Obra ABC tornou-se uma congénere da Obra da Rua do Padre Américo, e é nessa linha que hoje opera.

Estando a Obra para celebrar os 50 anos de existência (1963-2013), é provável que a recorrência jubilar seja comemorada com estudos e publicações sobre ela. Nessa altura, não faltará informação sobre a origem, história e importância da criatura, que o Padre Ivo Tonelli sonhou e pela qual tanto se sacrificou. Sirva este modesto artigo em A Folha dos Valentes como pontapé de saída nesse interesse comemorativo pela Obra de um confrade, de que a Congregação em Portugal inicialmente se alheou, mas que acabaria por adotar, em atitude de solidariedade num momento crítico da existência da Obra.

Poderíamos dizer que a Obra ABC é o filho adotivo da Província Portuguesa dos Dehonianos, um filho adotivo que certamente se procurará integrar plenamente no conjunto das outras obras filhas da mesma Província.

O Padre Ivo poderá figurar na história da Província Portuguesa como um offside, a jogar em fora de jogo, mas não há dúvida que encarnou uma das opções preferenciais do carisma dehoniano. As razões de uma certa reserva inicial por parte dos superiores e da Congregação são compreensíveis; talvez faltou ao Padre Ivo a noção de como envolver os confrades numa originalidade que sentia. Mas é de esperar que a Província reconheça, embora tardiamente, a validade da intuição e continue a acarinhar uma obra eminentemente social e, quem sabe, restituindo-lhe a intuição original.